segunda-feira, maio 25, 2015

Os devotos, o Divino e eu

As ruas  no entorno da praça da igreja já estavam coloridas e os devotos perfilados nos dois lados da rua para saudar uma das mais tradicionais festas religiosas católicas da região. Era domingo, dia 24 de maio e eu ali, com meus filhos, acompanhando a família, presenciando a tradição de um povo. Em Penha, há 179 anos, os devotos do divino fazem, da peregrinação da bandeira do Divino Espírito Santo e do dia da festa, momentos de bençãos e confraternização. Em meio a tudo, eu, uma praticante do espiritismo, acompanhando tudo, fotografando, cantando o cântico de Ivan Lins eternizados para a festa. Pra mim, nenhuma contradição.
Cresci em meio católico com a família vivendo a tradição açoriana do Divino com todo o fervor e desde cedo, no fundo da alma, percebia as contradições da fé dos outros com a que eu acreditava. Mas, gostava da festa, de ver os imperadores e suas famílias se mobilizando para uma grandiosa festa. A festa sempre foi rica, de quem podia ter dinheiro para bancá-la ou mesmo influência para mobilizar o maior número de pagantes, mas tinha uma certa magia nas visitas às casas, nas cantorias, nos preparativos, no envolvimento comunitário.
No meu Ribeirão da Ilha, a festa foi neste final de semana também. Não pude lá estar, como fazia quando pequena. Acompanhei, porém, a tradição penhense, com suas semelhanças e diferenças. Percebo que, apesar da imensa simbologia da festa, dos inúmeros rituais católicos (que quase sempre me parecem superficiais), não coloquei em cheque minha convicção religiosa por causa disso. O momento é sim, de renovação de fé para muitos. Para mim, idem. E não havia melhor lugar para essa renovação.
A questão é que a renovação da fé, em mim, está no próprio espírito, no que acredito para a evolução de minha alma, em como traço minha vida hoje, e não nos rituais que faço. A festa, porém, encaro como cultura popular, como momento único de presenciar a tradição de um povo se renovando com os jovens, apesar de muitos estarem ali apenas pelos pais. Ainda assim, se estão ali pela união da família, um benefício 'Divino' lhes é concedido, mesmo que não percebam.
E ao observar a festa com um olhar eclético e não submerso na devoção, percebo ainda mais a beleza da festa. Uma beleza que se mostra não no externo, no colorido da festa, na produção das roupas, nas cores das bandeiras, na mesa farta durante o almoço festivo. Uma beleza interior na devoção dos verdadeiros fiéis, naqueles que se emocionam verdadeiramente com a passagem da bandeira em suas casas, que traduzem isso para suas vidas, que guardam pequenas histórias de devoção.
Este ano, nas minhas poucas andanças pela festa, ouvi fiéis emocionados contando toda a alegria que foi ter o privilégio de ser uma das famílias que recepcionaram 'a bandeira'. Em toda a vida, contou uma das foliãs, sua mãe quis ser convidada para receber a bandeira (o sagrado, o divino para os católicos) e morreu não tendo o privilégio. Hoje, a filha recepcionava a bandeira com fé, devoção e homenagem.
Outro folião recordava do momento em que, durante seu ano como imperador, a maior emoção foi quando, durante a procissão festiva, uma revoada de pombos brancos foram soltos e estes, por uma benção do Divino (afirma o folião), percorreram as ruas da procissão, fizeram volta na igreja e partiram para o alto, num voo de volta para outra cidade (um sinal e iluminação para ele).
Ver a emoção nos olhos dessas pessoas ao contarem esses pequenos detalhes assim, cheios de fé e devoção, traz o verdadeiro sentido da festa. Neste momento, não importa o imperador, o ritual, as vestimentas, importa a fé de cada um.
Claro, nem todos encaram a festa com devoção. Para muitos, ainda, é sinal de status, de poder, de fazer parte de um grupo seleto de pessoas (abençoadas e abastadas) pela condição social. Por isso, há alguns anos, a Festa do Divino (não só em Penha, mas em todos os redutos açorianos) tem sido criticada por seus gastos excessivos com a simbologia, mostrando-se um ritual de poder e ostentação. O que, de certa forma, não deixa de ter sua verdade. Há os que estão ali para tudo isso.
 Mas, não são eles que verdadeiramente fazem a tradição se manter. Do que leva a faixa no peito ao que empunha a bandeira, do que carrega apenas um pingente do divino ao que serve e limpa o local do almoço festivo, do que coloca a coroa ao que varre o chão da igreja, do padre que celebra a missa ao fiel que ficou horas em pé, do lado de fora da igreja, rezando e cantando com a mesma empolgação, do folião que doa milhares de reais (que não lhe fazem falta) ao que simplesmente deu alguns reais para o folguedo (que foram suados). TODOS. Todos estes tiveram importante papel na manutenção da tradição. Ainda que achem que estão em patamares diferente, para o 'Divino Espírito Santo' tiveram papéis semelhantes.
Em matéria de fé, o que vale é o que está no coração e não o que sai da boca pra fora, mesmo que a fé também brote em forma de poesia na voz de muitos foliões. Como fazem os que cantam nas festas, como fez Ivan Lins. Pra mim, a canção mais representativa da festa e de uma verdadeira devoção é a "Devotos do Divino". Muitas pessoas hoje cantam a música sem pensar verdadeiramente no que ela significa. E pior, sem fazer  o que ela sugere.
Numa livre interpretação pessoal, segue a música que ecoa no meu coração:
"Os devotos do divino, vão abrir sua morada, para a bandeira do menino ser bem-vinda ser louvada" (abram seus corações para a palavra de Deus ser bem vinda);
"Deus o salve, este devoto, pela esmola em vosso nome, dando água a quem tem sede, dando pão a quem tem fome" (Deus abençoa aquele que tem fé e que mata sede e a fome de quem precisa),
"A bandeira acredita, que a semente seja tanta, que essa mesa seja farta, que essa casa seja santa) (Quem tem fé e planta o bem, terá mesa farta e casa santa);
"Que o perdão seja sagrado, que a fé seja infinita, Que o homem seja livre, que a justiça sobreviva" (essa parte nem precisa de interpretação);
"Assim como os três reis magos, que seguiram a estrela guia, a bandeira segue em frente atrás de melhores dias" (A peregrinação pela fé, ao levar o exemplo de Jesus por onde vamos, deve ser feita da mesma maneira por todos, independente de ser 'rei' ou 'do povo');
"No estandarte vai escrito, que ele voltará de novo, que o rei será bendito, ele nascerá do povo" (a palavra de cristo se renova constantemente, e nasce sempre do povo, do humilde, de quem tem fé e não ostenta).
A Festa do Divino não vai morrer tão cedo, mesmo com o crescimento de outras denominações religiosas, com a intolerância religiosa, com a falta de fé da humanidade. Ela não será, porém, imutável. Sofrerá mudanças aos longos dos tempos, assim como é a vida em sociedade. A fé verdadeira, porém, essa permanecerá. E ainda que eu não seja devota do Divino, há um divino em mim que celebra essa fé, essa emoção, essa palavra bendita, a ação bem feita. Há em mim a sensibilidade pela arte, pela cultura, pela expressão do que ela representa.
E eu lá, escondida atrás da câmera, me senti tão bendita quanto todos. Porque o Divino, pra mim, não está na bandeira (ainda que eu não veja mal algum nas pessoas que acreditam nesse tipo de símbolo), não está na coroa, não está nas vestimentas ou no ritual. A festa do Divino está dentro em cada um de nós, em nossas alegrias renovadas, nas nossas ações santificadas pelos exemplos de Jesus. Está no colorido de nossos sorrisos, na riqueza de nosso gestos, no perdão diário, nos exemplos repassados aos filhos,no olhar o outro com respeito e carinho, com sabedoria e humildade. Salve o divino que existe em nós!