7 de outubro de 2024. 19 horas. Rosa já me espera na esquina da Rua Ludgero Figueredo para chegarmos juntas à casa de seu Ivo e dona Tânia, no número 175, para a novena especial da Festa de Nossa Senhora do Rosário 2024. Adentramos o portão e já na varanda da casa simples, com a mesa grande cheia e umas cadeiras espalhadas, nos chama a atenção as senhoras reunidas, a mesa com a imagem de Nossa Senhora, um rosário estendido, velas e um lindo vaso com olho-de-boneca. Somos recebidas com alegria e já de início nos sentimos em casa. Depois de abraços e um pouco de prosa, sentamos para o início da novena. Ao passar o olhar atento a tudo em volta, sinto um misto de desconexão e pertencimento, de presente a passado. Parecem dois sentimentos contraditórios, mas não pra mim. A minha presença naquele momento, aos olhares dos demais, é apenas uma presença de representar um cargo, um local. “- Tu és de que secretaria? pergunta dona Ana Lucia, a rainha da festa”. “-Da Cultura”, respondo eu. Rosa responde ser da Educação.
Na verdade,
não estamos ali nem por uma nem por outra. Estamos pela ligação que nos une de
alguma maneira a esta festa centenária. Ainda que por motivos diversos, estamos
ligadas à festa e às tradições dos pretos. Volto a olhar em volta e, por
segundos (que parece muito mais tempo), observo os homens mais afastados só “de
papo”. Na mesa no quintal, três ou quatro senhoras pretas com cadernos e
canetas na mão vão finalizando os últimos preparativos da festa, os cálculos de
comida, as doações em dinheiro, quem vai dar o quê. Todos os detalhes nas mãos
daquelas que já há décadas trazem a festa com devoção e dedicação.
Volto no
tempo, exatamente na primeira vez que vi um cortejo da festa em Piçarras, assim
que cheguei na cidade, em meados da década de 90. Como jovem estudante de
jornalismo e curiosa com as tradições locais, parti para acompanhar o cortejo,
que saiu do terreno onde estavam o mesmo casal Ivo e Tânia, mas na esquina
entre a Av. Emanoel Pinto e a Rua Alexandre Guilherme Figueredo. Registramos em
fotos, eu me lembro, ainda que não saiba mais onde estão esses registros. O
colorido, os detalhes das roupas, o grupo de catumbi com suas flores coloridas
na cabeça, suas danças e cantos, o cortejo com o andor da santa no ombro dos
fiéis até a Igreja Matriz, a missa com sincretismo religioso (uma raridade
aceita por poucos padres). Tudo me chamou a atenção e me fez resgatar as raízes
perdidas, ou nunca me apresentadas como deveriam. Sim sou negra, ainda que de
pele bem clara e de “cabelo bom”, como minha tia Lela, irmã de minha mãe, sempre
se orgulhou (na certeza de que a frase, vinda das amarguras do coração, quisessem
me dizer – vais sofrer menos do que sofremos, minha filha.) Posso ter sofrido quase
nada nesse quesito, mas me afastou muito de quem todas as mulheres da família da
minha mãe foram e são, e me mostrou já de pequena o lado cruel da discriminação
nada velada.
Depois desse
leve piscar de olhos no tempo, dona Conceição chama a todos para o início da
novena. Ela, quase uma sumidade em termos de irmandade de Nossa Senhora do
Rosário em toda a região, saiu de Itajaí para estar ali, comandando a novena e
tudo o que envolve a festa. Ainda que eu não seja católica hoje, minha criação
foi em família católica e conheço os rituais dos devotos. Fico esperando a
novena iniciar para tentar acompanhar. O que ouvimos de início, porém, foi uma
aula de história, de resistência, de luta, e mesmo de desgaste de uma raça que
diariamente briga por ser reconhecida em seus direitos, em seus desejos, em sua
cultura, sua existência. O lugar de fala de dona Conceição não é de privilégio,
é de puxão de orelha. Ela nos apresenta um texto marcado por contextualização
política e social, que para muitos soa ruim e faz torcer a boca de desagrado.
“Nossa luta é política sim. Não aquela partidária, a de direitos mesmo”, lembra
dona Conceição.
Depois do texto
introdutório e comentários de muitas mulheres, segue-se a novena, com orações e
um canto emocionado da música Nossa Senhora, do Roberto Carlos. As crianças ali
acompanham tudo, rezando e ouvindo curiosas o que os pais, tias e todos
falavam. O canto é especial, afinal, dia 7 é o dia de Nossa Senhora do Rosário
e a casa simples vira templo dos mais iluminados. No rosto dos fiéis ali
presentes (pretos ou não), toda a devoção, agradecimento pela vida. “ Não
estamos aqui só pra pedir. Já pedimos muito esse ano pra ela, por todas as
doenças que enfrentamos. Temos é que agradecer”, reforçou dona Tania. Antes da
boa canja de galinha servida pelos anfitriões da noite, o rei e a rainha do Rosário,
seu Domingos Ignácio e dona Ana Lucia relatam a satisfação de estar ali, de serem
abençoados com o convite, mas seu Domingos um pouco triste de ver sua caminhada
política não refletir o desejo de lutar pelas causas da comunidade e também da
irmandade e da festa.
Ao ver seu
Domingos relatar suas impressões, pisco novamente os olhos no tempo e lembro do
seu pai Antônio sentadinho ali na varanda de sua casa de madeira na rua Eleotéria
Vieira Figueredo, de boné branco na cabeça, só observando a ainda esparsa
vizinhança. Ele não durou muito depois que eu o conheci mas, dizem, foi um
grande festeiro e dançante da festa. A dona Olívia Eduarda Cândido, a Dona
Cucha, a mãe de seu Domingos, essa eu conheci um pouco mais. Foi minha
entrevistada para uma reportagem sobre a Festa do Rosário, a dança de São Gonçalo
e algumas outras manifestações da comunidade. Baixinha, magra, de rosto liso e
cabelo um pouco grisalho, era ligeirinha pelas ruas da cidade. Uma senhorinha
de quase 100 anos que os vizinhos nunca esqueceram e que ainda fazia questão de
frequentar os bailes na Associação dos Aposentados. Uma energia que dava
inveja.
Nem bem a
mente tinha retornado da volta no tempo, ouço a voz de seu Domingos: “Precisamos
de união, precisamos de um espaço”, era a frase com desejo de não desistir.
Ainda houve tempo antes da comida para a observação: “não estamos só pela fé e
pela comida. É preciso que estejamos juntos por todas as lutas que temos”,
destacou dona Conceição. Nessa hora, trechos da música do Titãs me vêm rápido à
cabeça: “A gente não quer só comida, diversão e arte (...) A gente quer
inteiro, não pela metade”.
Entre um
prato de sopa e outro, entre um pé de galinha e uma moela, muitas risadas,
falação e por vez o outra um comentário. “A tua vez é a próxima Evandro”, um
convite - quase obrigação - ao jovem ali presente. Apesar de saberem que a
próxima festa não será a vez de Evandro, todos ali mostram ao jovem morador
local a sua responsabilidade de um dia comandar a festa histórica na
comunidade. Depois dele, alguns anos depois quem sabe, a Maria filha da Ivia e
neta do Ivo também seja a rainha, assim como outras crianças da família e da
irmandade que hoje ainda chega a Penha e Itajaí. As crianças ainda são poucas,
mas são elas o futuro da festa na nossa comunidade.
Antes de
entrar no carro, Rosa comenta quase sem querer que era seu aniversário naquele
dia e estava feliz em estar ali. Logo ela que faz mestrado na UFSC e sua
dissertação é justamente uma maneira de registrar e buscar a história da festa
da cidade e transformar essa pesquisa num plano de atividades para o ensino de
história e cultura afro-brasileira nas escolas locais. Ao cumprimenta-la pelo aniversário, me vem na
memória a minha mãe, que eu não tinha certeza se fazia aniversário na mesma
data. Depois confirmei que sim.
São as
amarras da vida quase invisíveis que nos levam a seguir caminhos que se cruzam
e se completam. Rosa e eu e todas as muitas mulheres estão ligadas à Festa de
Nossa Senhora do Rosário por vários caminhos. Os tons de pele que nos afastam e
nos definem jamais determinam por onde queremos seguir e como podemos pensar,
unidas pelo ideal de manter a Festa de Nossa Senhora do Rosário como patrimônio
imaterial de nossa cidade e, pra sempre, na memória de nossa gente.
TEXTO PUBLICADO NA ANTOLOGIA DA ALBSC BALNEÁRIO PIÇARRAS "Memórias Nossas" 2024